Erich Fromm – O Medo à Liberdade

Erich Fromm – O Medo à Liberdade

Este livro ilumina uma grande fatia da realidade dos nossos tempos, esta frase talvez soe um pouco estranha mas, parafraseando Wittgenstein no seu prólogo, creio que aqueles que já tiveram esta ideia compreenderão o que digo.
Fromm faz situar muito bem o que existe no real através dos conceitos psicológicos com que explica as realidades, nomeadamente, a luta entre a liberdade de ser e enfrentar o destino que se quer para si, e a submissão a uma ordem mais geral que apoie, ajude e nos permita ser sem duvidar e sem nada perguntar, nem escolher por si próprio. Deixamos de existir para aparentemente sermos mais.
Este livro chama a atenção para o facto da maioria de nós ter optado pela submissão para ganhar. Sim, submeto-me a uma verdade pré existente, interiorizo toda uma forma de pensar, viver e ser, lado a lado com milhares ou milhões e, em contrapartida, todos juntos vamos impor a nossa visão ao mundo, vamos vencer. Perco-me para vencer, daí o uso do poder ser a pedra de toque, bem como a ausência de ego.
Os fascismos como algo que já vem de nós e só espera pelo sistema social certo que o faça desabrochar, o sistema social, ou o partido que inflame corações pequeno burgueses, aparentemente sem futuro, dando-lhes uma razão para lutar.
Não sei se a análise que Fromm faz de Hitler, aliás exatamente dentro desta lógica de submissão em algo maior como a natureza, e o poder e a vitória, em interação com um sistema económico capitalista pequeno-burguês, é completamente abrangente.
É que, apesar de tudo, Hitler e os seus apaniguados mais chegados inovaram no mal, apontarem ao mal puro, ao puro ódio. Parece haver mais qualquer coisa, falta saber se é loucura ou autonomia no mal; ou as duas coisas.
Sinceramente, concordando que realmente as questões psicológicas estão sempre presentes e têm impacto na realidade social, não podemos esquecer que existem variáveis da parte social, variáveis que aprofundam ainda mais determinadas características psicológicas dos indivíduos e tendem a transformar os seres humanos em meios. Ajudam-nos a ser as roldanas de algo maior que eles que os desmembra pela alma, pelo espírito. Fromm não as aceita, mas não significa não existam.
Está muito interessante a análise do homem da idade média, ainda sem liberdade abstrata e a análise sobre o início da construção do homem moderno como o conhecemos hoje, com a Reforma.
Para ler, mesmo até por quem já saiba que é para ganhar mais consciência e também porque, uma vez por outra, é bom sentir não se está só.

Aforismos de sala

Aforismos de sala

Põem 1 juízo de valor a selar o que ainda nem foram capazes de identificar.

O juízo menos contraditório que se pode dizer dos seres humanos é que são contraditórios.

O nosso maior bem é a suspeição de nós próprios.

O que para uns é vaidade para outros é constatação.

O nosso problema é que para a maior parte das pessoas os problemas nem sequer são problema.

Se Isto é um homem – Primo Levi

Se Isto é um homem – Primo Levi

Este livro descreve o conjunto de normas perfeitamente irreais, absurdas e ilógicas que fizeram parte da vida quotidiana dos presos em Auschwitz, no Lager. Estas regras e todos os procedimentos  que os prisioneiros realizam com o objectivo de sobreviver são verdadeiramente animalescas. E, no entanto, todos procedem como se tudo aquilo fosse normal.

O livro é tanto mais desolador e acabrunhante quanto é contido, não há nenhuma lamentação excessiva, apenas descrição e reflexão sobre o trabalho abjecto, as condições onde dormem, comem, e o que aquilo os torna, enfim, o que é o homem?

A descrição asfixiante da estupidez em forma de vida de todos os dias.

Como foi que nos transformamos nisto, e porquê?

Livro seco, directo, escrito olhos nos olhos. Sem ódio.

Só isso.

E não é pouco.

Após lermos um livro com este impacto emocional, é comum repetirmos que é preciso contar para não voltar a acontecer.

Não creio que contar por si só chegue para alguma coisa. O importante era verificarmos até que ponto não existe algo semelhante, num grau muito menor, claro, mas com a mesma lógica, em algumas realidades quotidianas. Isto é, regras arbitrárias, relações sem empatia, desprezo e/ou indiferença pelo outro. Mais, a possibilidade que damos aos outros de ditarem regras completamente absurdas e arbitrárias. Estas lógicas de dominação do outro podem criar uma aceitação do inaceitável que um dia pode calhar-nos mal.

Não chega contar. Não chega ouvir. É preciso exigir um quotidiano onde as sementes de dominação se vejam impedidas de germinar.

Este é um livro sucinto e, no entanto, diz o que desse mundo urge dizer.

Para ler e tomar em devida conta na sua passagem para um real quotidiano cada vez mais bovinamente racionalizado.

É estranho

É estranho

é estranho

esta coisa do viver

não valer nada

tudo vale

dinheiro profissão

família amor

só a vida

não tem valor

é estranho não valer nada

esta coisa de sentir

perscrutar

ouvir

simplesmente ver-se

numa forma de ser

pensar

duvidar

buscar

nunca ficar

se se for capaz

a ouvir-se crescer

o que se é

é estranho

esta coisa do viver

não valer nada

nunca se ouvir

alguém dentro

ser capaz até de amar

ser outro por um momento

estranho esta coisa de ser

nada valer

eternamente meio

para outra coisa qualquer

Sylvia Plath – Campânula de vidro

Sylvia Plath – Campânula de vidro

Este romance apresenta-se em duas partes. A primeira descreve a vida da jovem Esther que, com 19 anos, obteve, pelo excelente desempenho académico e para aperfeiçoar, ainda mais, o seu talento literário, uma bolsa universitária e um estágio numa revista em Nova York.
Nesta primeira parte, a jovem espera uma revelação, algo que lhe mostre que o mundo é algo mais em termos espirituais, relacionais, afectivos – enfim, algo mais -, mas a revelação não surge. E, usufruindo dessa bolsa, vivendo nesse suposto mundo mais rico, Sílvia é obrigada a constatar o óbvio, que o mundo que a rodeia é pouco, de um lado formalismos idiotas, rançosos e até racistas, e do outro bebedeiras e indivíduos sem valor. A protagonista faz um esforço para se integrar, mas a conclusão a que parece chegar, dê as voltas que dê, é que aquilo que o mundo é em termos espirituais, ou intelectuais, é muito menos do que precisa para sobreviver.
Na segunda parte do romance vemos, através de vários flash backs, a jovem perdida, incapaz de superar a sua angústia, vendo o mundo, a vida, os outros, a si própria através desse estado de desesperança, sem vontade. Acaba internada em um hospital psiquiátrico.
As primeiras qualidades que me apraz lembrar quanto ao estilo deste romance são, sem dúvida, a capacidade de Silvía Plath de escrever apelando a todos os sentidos: visão, audição, cheiros, tacto; a extrema fluidez da sua escrita; a capacidade de transportar o leitor para o que se passa dentro da sua cabeça, torpor, alheamento sufocante, visão sobre os outros, compondo retratos muito sugestivos, vivos.
Quanto à característica mais presente – para mim -, não é propriamente a doença, mas a inadequação da protagonista ao mundo.
Não é que ela negue desde o início o que vê, ou se isole, não, a protagonista quer mesmo adaptar-se, contentar-se com o mundo, até acompanha as outras jovens, participa e acha o mundo está certo, mas precisaria de mais alguma coisa, espera do mundo outras dimensões que não passem por compras, bebedeiras e flirts.
Não existe autenticidade, nenhum desejo de algo mais do que a vida mais prosaica, nada. Aquilo que vê à sua frente os outros serem é o que há. Não existe mais nada. E essa constatação íntima abre uma ferida dentro dela por onde a loucura se espalha. O que está em causa não é alguém que não aceita os padrões colectivos. O que está em causa é que a protagonista espera mais dos homens, das mulheres, da vida, do colectivo, do mundo. Por isso ela é feminista sem defender o feminismo, simplesmente pela forma como pensa e vive pensando por si, analisando e criticando o mundo de forma independente.
O que desde sempre a perturba é a vida insípida, é não ter tempo para si, para pensar, para ser, para escrever. O que a perturba é vir a viver um casamento hipócrita, falso, é ficar encafuada a uma pobreza intelectual obscena.
A protagonista simplesmente não se adequa porque quer mais, quer diferente, quer algo autêntico e o mundo não tem isso para lhe dar.
Essa impossibilidade de crescimento abre uma ferida enorme dentro da personagem uma sensação de nada valer a pena, de beco sem saída e até de apatia, que se abeira da loucura de um modo extremamente racional, porque não é por não ver como as coisas são que enlouquece, mas por ver bem demais como elas são.
As experiências que tem em termos de relações humanas são deprimentemente pobres, e ela sente isso no corpo, analisa-o e conclui que não quer viver naquela mediocridade. A questão é essa, e talvez seja por isso que o romance acaba com a personagem a não pôr de lado voltar a enlouquecer. É que aquilo que a deprime de forma tão fortíssima é real e ela sabe que a vida pode voltar a empobrecer e ela voltar a deprimir. Daí não poder dizer com certeza que não voltará a sentir-se desse modo a que para facilitar se chama loucura. Aliás, sabendo que Sylvia se matou, como se matou, e como foi capaz ao mesmo tempo de proteger os filhos, não se pode deixar de pensar que Sylvia, tal como a personagem, foi ferozmente lúcida na sua loucura.
Uma das certezas com que fico deste livro é que não é por a protagonista ser diferente – no sentido de estar contra os valores do seu mundo – que enlouquece. Não. A protagonista é o sítio onde a loucura tem lugar apesar dela. Em muitos excertos do livro a personagem descreve de modo minucioso, asséptico, o que lhe está a acontecer, a sua apatia, a sua falta de vontade, o seu desinteresse perante tudo e todos, a tristeza que se vai avolumando dentro dela, deixando-a como que dentro de uma campânula.
A narradora descreve de forma muito rica e viva essa vivência do mergulho em todos os sentidos na loucura ao mostrar-nos o seu alheamento, falta de vontade por tudo, incapacidade de se alimentar, indiferença em relação a tudo e a todos. A personagem olha para si como para um pedaço de carne à distância a ver-se ser, como se não lhe dissesse respeito quem esse ser é.
O romance não é panfletário. A protagonista põe tudo em causa porque se limita a ser ela própria, o que ela é já coloca em causa toda uma sociedade.
Nudez mental completa, sem cedências, nem subterfúgios, construindo uma dignidade literária à força de um estilo narrativo incisivo, penetrante, lúcido.
Excelente livro.

Marina Tsvetáeva – Depois da Rússia

Marina Tsvetáeva – Depois da Rússia

Muito se pode dizer deste livro de poesia – Depois da Rússia -, e sobre a poesia de Marina, mas vou discorrer apenas sobre três ou quatro aspectos que me chamaram mais a atenção nesta poesia.

Um primeiro tem a ver com o uso simbólico que faz dos mitos, nomeadamente gregos, e da Bíblia.

por exemplo, o mito de Eros e Psique, sendo Psique aquela que continua leal, à procura pelo mundo inteiro daquele que ama, sofrendo tormentos e perdas sem fim pelo seu amor.

Metáfora que, infelizmente, de algum modo se adequa extrordinariamente bem a Marina, sofrimento, dor, fuga, e mais sofrimento, mais dor e perdas constantes até ao dia em que vai ao encontro da morte.

O mito de Euridice e Orfeu em que Marina entende Euridice como aquela que cortou os elos com o mundo, aquela que foi tomada pela imortalidade e já não quer voltar atrás. Diz a Orfeu que não venha por si, pois ela é agora um ser apenas espírito, tudo acabou.

Há vários poemas de Marina em que o mundo é visto como uma queda, viver é perder-se, nascer é cair, e morrer será como Eurídice voltar a ser grande, pertencer ao espírito do universo.

Outro mito é o de Lilith, a mulher insubmissa, a primeira mulher, a rebelde, a que não aceita a superioridade masculina, a mulher divina, independente.
O mito de Fedra e Hipólito representa para Marina a construção da moral imoral da paixão, uma moral que vive das forças da paixão numa lógica que não é a do homem comum, como se a paixão fizesse ascender a um patamar superior os seres que nela fossem capazes de viver. Como se fosse um mundo regido por forças que o homem e a mulher comuns desconhecem.

Dentro desta lógica, ligada ainda aos mitos, vemos surgir em muitos poemas a mulher oráculo, a mulher perseguida pelos seus poderes, a mulher que contrapõe os seus valores e o seu poder aos poderes e aos valores masculinos. A mulher insubmissa que ousa ser e amar, sibila.

Nem o Estalinismo conseguiu destruir esta forma de Marina ser e ver a mulher.

Há ainda outros mitos, Tarpeia, a mulher que traiu os romanos, e Sulamita, a bela e formosa mulher do cântico dos cânticos, independente, leal e independente. Há ainda Aquiles e Helena entre outros.

Estes mitos são o tijolo da alvenaria do poema de Marina, visão de sentimentos e comportamentos de personagens que encarna, nem sempre de acordo com a visão tradicional.

Marina, torce os mitos, para os fazer viver de acordo com os seus temas primordiais.

As imagens de Marina são um animal certeiro, fresco, que esvoaça e se move no papel. Imagens cruas, violentas, sugestivas, sangrentas, apaixonadas vorazes: “Dentes em cascalho – em migalhas”, forjadas na própria carne, pedaços de alma e sangue.
É um pouco atrevido dizer isto, mas sinto em alguns versos semelhanças com Dickinson.

Por exemplo nestes versos:

“Vertida do balde-

A manhã. A cal do caiador.

Na crónica da costela,

O céu- que clareira!”

Temos travessões, suspensões, elipses.

Outro dos temas recorrentes tem a ver com o tempo. Perseguida pelo estalinismo até à exaustão fala desse tempo, melhor, mais do que desse tempo concreto, fala de um tempo de que esse tempo é exemplo, de um tempo “do mal ardente”, de um tempo “de ser órfão do mundo”. Marina sabe que aquele tempo já existiu e voltará a existir. Um tempo terrível que lhe minou a vida e que ela desassombradamente assumiu como o seu tempo, vivendo nele da forma mais livre que foi capaz. Esse tempo instalado na sua Rússia, para onde voltou por ser a sua casa, e que acabou por lhe roubar tudo o que era possível roubar, ao ponto de uma das suas filhas – Irina- morrer de fome; e acabou por a conduzir ao suicídio. É esse tempo maldito que Marina caracteriza incessantemente.
Marina exprime-se na sua poesia como poeta de rara grandeza, sem falsas modéstias, artífice que conhece “todas as escadas divinas”.

Uma poesia de rara altitude, voz poderosa que se desdobra em múltiplas vozes de forma desassombrada e intrépida, apaixonada.

Não posso deixar de salientar a paixão que coloca na escrita, como se as palavras fossem estacas que lhe houvessem atravessado o coração, e ela as cravasse imorredoiras e sangrando no papel, desfolhando-as como pétalas, enquanto morre.