A sangue frio- Truman Capote

A sangue frio- Truman Capote

O que dizer sobre este romance?

Vemos nestas páginas a mesma impotência fria que nos sucede ter perante o tempo que passa, escorregam-nos das mãos as justificações mais óbvias sem nada termos para as substituir. Não percebemos porque são assim as coisas.

Fica um romance brilhante, sim, Capote escreveu um romance, podem chamar-lhe não-ficção, mas é um romance. Aliás, este romance comprova mais uma vez que existe uma verdade em ficção, uma verdade diferente da verdade dos factos, mas não deixa de ser uma verdade impressionante. E Capote dá-nos essa verdade com mestria, de uma forma fria e estudada, sem, aparentemente, se imiscuir. E não deve ter sido fácil arrancar tantos pormenores das personagens que enfileirou no romance uma a uma, com se abrisse as portas de um teatro para entrarem em cena no momento certo.

O livro é uma torneira que vai enchendo lentamente uma banheira de factos. Cada naco de prosa abre-nos uma comporta e ficamos a conhecer um pouco mais do interior de cada um dos intervenientes nos homicídios e das suas vidas pessoais e familiares, assim como das dos polícias que os perseguem – sobretudo Dewey.

Não responde às questões essenciais porque estas não têm resposta – o monstruoso sucumbe-nos e o monstruoso gratuito muito mais.

Nada podendo dizer Capote mostra tudo o que é possível mostrar com uma voraz câmara fotográfica fazendo aparecer e desaparecer as suas personagens sempre vivas.

Diz ao leitor és tu que tens de dizer porque é que estes dois se transformaram em monstruosos assassinos, mas nós não conseguimos perceber porque o fizeram, está lá tudo e no entanto algo nos escapa. Podemos olhar o contexto familiar, ou o contexto social ou as oportunidades perdidas, mas nada disso nos explica semelhante indiferença pelo outro, a não ser que sejamos todos assim e apenas aconteceu que a alguns de nós a integração no meio conduziu para outras paragens. Ou será que o simples facto de acharem que já não têm nada a perder os fez agirem assim?, ou será uma bofetada no mundo que sempre os tratou mal?, ou algo que algures no seu desenvolvimento emocional se embotou?

O tom que Capote escolheu para escrever este romance foi um tom quase neutro, pouco emotivo, cerebral, sem propriamente querer justificar fosse o que fosse. Deixa-nos a fazer o nosso juízo perante o que é o que é. E nós nunca o fazemos.

Roger Scruton –  Tolos, Fraudes e Militantes

Roger Scruton –  Tolos, Fraudes e Militantes

É o livro de um grande filósofo e pensador, escrito com fluidez, elegância e demonstrando possuir um conhecimento sólido sobre as dezenas de autores que analisa e critica.

Evidentemente que as críticas são sintéticas e direccionadas para determinados aspectos das obras, mesmo assim demonstra possuir um conhecimento profundo de autores como Foucault, Sartre, Lukács, Habermas, Gramsci, entre VÁRIOS outros.

A sua visão conservadora é um contra poder cáustico em relação a um discurso que faz parte da realidade académica que ainda hoje quase poucos põem em causa.

Mas Roger Scruton põe em causa de forma cáustica, acerada diria o pensamento de esquerda, e permite-se poucas derivas pessoais o que é ótimo, a coisa é no osso e com martelo. Adorei.

Põe a nu a conivência de uma determinada esquerda intelectual com as atrocidades cometidas pelos governos comunistas totalitários. Estes autores admitem a violência, a destruição, o mal, a ausência de princípios, o vale tudo, a força bruta, a dissimulação, a mentira. Defendem que a legalidade é uma questão técnica e encontram alegremente soluções sem princípios, Lukács afirma mesmo que a perversidade é uma construção burguesa. Muitos intelectuais marxistas pactuaram alegremente com a violência perpetrada contra milhões em nome de ideias que queriam certas a todo o custo.

Para além disto, que não é pouco, repetem o mesmo discurso de sempre partindo de uma lógica marxista já estafada, há aqui muito da mesma ladainha, dos mesmos conceitos, é o materialismo dialéctico, a luta de classes, o fetichismo da mercadoria – e mercadoria aqui é tudo. Partem do que conceberam e buscam razões que dêem razão ao que já sabem, e encontram sempre dados que corroboram as suas ideias pré-definidas.

Roger lembra- e bem- que os  conceitos têm de ser pesados e analisados para conhecer da sua pertinência e relação com a realidade. Parece-me excessivo dizer que os conceitos nada significam, mas têm de ter conta, peso e medida. Nenhum conceito explica toda a realidade, é por isso que os teóricos marxistas acabam muitas vezes a espancar a realidade para que a teoria acerte.

Agora, também se podem fazer algumas críticas a Roger, como perguntar se ele não faz de certo modo o mesmo.

O que descobre dentro do conservadorismo não está já dentro do conservadorismo?

Os dados dele não corroboram o que já sabe?

Um dos problemas dos autores marxistas é o seu absoluto, parece que as coisas são de uma só forma, não existem graus, nem outras realidades. E isto está muito bem documentado nas críticas do autor.

Mas, por exemplo, na página 196 Scruton ironiza sobre a forma de auto escravidão em que segundo Adorno nos tornamos mercadorias fetiche, meros objectos de objectos.

Mas depois, diz que é certo que nos transformamos em objectos só que não é através de fetichismos da mercadoria mas porque nos vendemos a ídolos de barro, como vem na Torá. Bem, em que ficamos, é certo ou não é certo tornarmo-nos objectos através da adoração que nutrimos por certos bens?, passando de certa forma a objectos desses objectos?

Eu percebo a metáfora dos ídolos, mas dar uma explicação diferente de algo – e através da Torá (?) – não o torna menos real.

Depois, Scruton não refere as pessoas exploradas ao longo de séculos, que nasciam, viviam e morriam na miséria. Pode concordar-se com a ideia de conservar, mas é necessária alguma mudança social que permita uma maior igualdade económica e social e cultural, para que não haja um predomínio de certas classes, de certos grupos eternamente.

Para que não haja necessidade de revoluções é preciso uma maior igualdade de oportunidades.

Os filhos dos que nunca tiveram nada não tem muito a perder e cortam com o passado habitualmente da única forma que conhecem que é destruindo, e os que sempre tiveram tudo fazem o que sempre fizeram, reprimem. É este ciclo que é preciso cortar. E Roger só fala das enormidades dos governantes de esquerda e nunca refere em momento nenhum toda a repressão que se exerceu durante séculos sobre os que pouco ou nada detinham. É preciso conservar, mas não uma paz podre.

São as mudanças sociais reais e duradoiras que nos podem salvar de regimes indesejáveis. E a verdade é que a Europa está a ser, mais uma vez, ameaçada por regimes totalitários, sobretudo de direita, mas não só, e nada faz para se regenerar socialmente.

Gostei de ver como Roger Scruton no último capítulo avança para uma explicação do que é o pensamento conservador.

Um livro que deveria ser lido por toda a gente para, pelo menos, se ficar com uma maior abertura de ideias.

E, diga-se o que se disser, numa coisa Scruton tem razão, devemos pensar como é que teorias que defenderam regimes monstruosos que falharam e cometeram crimes bárbaros podem continuar em termos académicos a ser a moda, a voz, o futuro, sem nunca se terem sequer repensado. Não estará na hora de encontrar alternativas?

Um livro que se deve saber situar, mas que é fundamental para repensar a validade de certo tipo de pensamentos. O que, evidentemente, só é possível porque o livro está escrito de uma forma perfeitamente brilhante. Diz muito em muito pouco. A ler sem dúvida.

De Profundis- Oscar Wilde

De Profundis- Oscar Wilde

Já andava há algum tempo para ler este livro, mas fui adiando. De qualquer modo, Oscar Wilde é demasiado grande para ficar esquecido muito tempo.
De Profundis é a grande carta repassada de sofrimento de Wilde. A única que poderia escrever alguém com o seu talento, a sua loucura e o seu sofrimento. O talento é visível na forma como nos dá, numa carta que poderia ser de queixume, uma obra magnífica em que se desnuda, se analisa, analisa a sociedade, o seu talento, a sua imprudência, a sua vaidade, num estilo primoroso, supremamente rico, com inúmeras alusões e pensamentos numa transbordante tapeçaria de cultura pessoal, Márcias, kropotkin, Shakespeare, Dante, os gregos.
Quanto à loucura ele faz questão de mostrar vezes sem conta a sua imprevidência, fraqueza e indigna frivolidade.
Quanto ao sofrimento é o chão sagrado onde escreve, é o que lhe dá força, é o que o faz repensar-se, é a alavanca para uma nova visão de si, onde busca as forças para ressurgir como um novo homem. É nesta ilha de sofrimento que Wilde se detém para construir uma visão sobre o valor transformador do pecado através da aceitação e do arrependimento. A sua visão de Cristo, o seu Cristo romântico é, na sua artificialidade, das mais belas e verdadeiras criações artísticas. Wilde cria um mundo, uma visão, uma ideologia à volta do pecado e do arrependimento com as suas personagens favoritas: Cristo, São Francisco de Assis, poesia, arte, flores.
É uma iluminação por dentro depois de cair tão baixo. Ele diz: estou preso, mas sinto e muitos filistinos livres continuam presos à secura da sua alma.
Wilde continua até ao fim iconoclasta, quase soberbamente iconoclasta dada a situação onde se encontra. Mas não, não é ali que ele se encontra, mas na carta onde se expõe e onde ele é verdadeiramente a sua arte.

Erich Fromm – O Medo à Liberdade

Erich Fromm – O Medo à Liberdade

Este livro ilumina uma grande fatia da realidade dos nossos tempos, esta frase talvez soe um pouco estranha mas, parafraseando Wittgenstein no seu prólogo, creio que aqueles que já tiveram esta ideia compreenderão o que digo.
Fromm faz situar muito bem o que existe no real através dos conceitos psicológicos com que explica as realidades, nomeadamente, a luta entre a liberdade de ser e enfrentar o destino que se quer para si, e a submissão a uma ordem mais geral que apoie, ajude e nos permita ser sem duvidar e sem nada perguntar, nem escolher por si próprio. Deixamos de existir para aparentemente sermos mais.
Este livro chama a atenção para o facto da maioria de nós ter optado pela submissão para ganhar. Sim, submeto-me a uma verdade pré existente, interiorizo toda uma forma de pensar, viver e ser, lado a lado com milhares ou milhões e, em contrapartida, todos juntos vamos impor a nossa visão ao mundo, vamos vencer. Perco-me para vencer, daí o uso do poder ser a pedra de toque, bem como a ausência de ego.
Os fascismos como algo que já vem de nós e só espera pelo sistema social certo que o faça desabrochar, o sistema social, ou o partido que inflame corações pequeno burgueses, aparentemente sem futuro, dando-lhes uma razão para lutar.
Não sei se a análise que Fromm faz de Hitler, aliás exatamente dentro desta lógica de submissão em algo maior como a natureza, e o poder e a vitória, em interação com um sistema económico capitalista pequeno-burguês, é completamente abrangente.
É que, apesar de tudo, Hitler e os seus apaniguados mais chegados inovaram no mal, apontarem ao mal puro, ao puro ódio. Parece haver mais qualquer coisa, falta saber se é loucura ou autonomia no mal; ou as duas coisas.
Sinceramente, concordando que realmente as questões psicológicas estão sempre presentes e têm impacto na realidade social, não podemos esquecer que existem variáveis da parte social, variáveis que aprofundam ainda mais determinadas características psicológicas dos indivíduos e tendem a transformar os seres humanos em meios. Ajudam-nos a ser as roldanas de algo maior que eles que os desmembra pela alma, pelo espírito. Fromm não as aceita, mas não significa não existam.
Está muito interessante a análise do homem da idade média, ainda sem liberdade abstrata e a análise sobre o início da construção do homem moderno como o conhecemos hoje, com a Reforma.
Para ler, mesmo até por quem já saiba que é para ganhar mais consciência e também porque, uma vez por outra, é bom sentir não se está só.

Aforismos de sala

Aforismos de sala

Põem 1 juízo de valor a selar o que ainda nem foram capazes de identificar.

O juízo menos contraditório que se pode dizer dos seres humanos é que são contraditórios.

O nosso maior bem é a suspeição de nós próprios.

O que para uns é vaidade para outros é constatação.

O nosso problema é que para a maior parte das pessoas os problemas nem sequer são problema.

Se Isto é um homem – Primo Levi

Se Isto é um homem – Primo Levi

Este livro descreve o conjunto de normas perfeitamente irreais, absurdas e ilógicas que fizeram parte da vida quotidiana dos presos em Auschwitz, no Lager. Estas regras e todos os procedimentos  que os prisioneiros realizam com o objectivo de sobreviver são verdadeiramente animalescas. E, no entanto, todos procedem como se tudo aquilo fosse normal.

O livro é tanto mais desolador e acabrunhante quanto é contido, não há nenhuma lamentação excessiva, apenas descrição e reflexão sobre o trabalho abjecto, as condições onde dormem, comem, e o que aquilo os torna, enfim, o que é o homem?

A descrição asfixiante da estupidez em forma de vida de todos os dias.

Como foi que nos transformamos nisto, e porquê?

Livro seco, directo, escrito olhos nos olhos. Sem ódio.

Só isso.

E não é pouco.

Após lermos um livro com este impacto emocional, é comum repetirmos que é preciso contar para não voltar a acontecer.

Não creio que contar por si só chegue para alguma coisa. O importante era verificarmos até que ponto não existe algo semelhante, num grau muito menor, claro, mas com a mesma lógica, em algumas realidades quotidianas. Isto é, regras arbitrárias, relações sem empatia, desprezo e/ou indiferença pelo outro. Mais, a possibilidade que damos aos outros de ditarem regras completamente absurdas e arbitrárias. Estas lógicas de dominação do outro podem criar uma aceitação do inaceitável que um dia pode calhar-nos mal.

Não chega contar. Não chega ouvir. É preciso exigir um quotidiano onde as sementes de dominação se vejam impedidas de germinar.

Este é um livro sucinto e, no entanto, diz o que desse mundo urge dizer.

Para ler e tomar em devida conta na sua passagem para um real quotidiano cada vez mais bovinamente racionalizado.

É estranho

É estranho

é estranho

esta coisa do viver

não valer nada

tudo vale

dinheiro profissão

família amor

só a vida

não tem valor

é estranho não valer nada

esta coisa de sentir

perscrutar

ouvir

simplesmente ver-se

numa forma de ser

pensar

duvidar

buscar

nunca ficar

se se for capaz

a ouvir-se crescer

o que se é

é estranho

esta coisa do viver

não valer nada

nunca se ouvir

alguém dentro

ser capaz até de amar

ser outro por um momento

estranho esta coisa de ser

nada valer

eternamente meio

para outra coisa qualquer