Manhã

Manhã

Fico a olhar o tecto até a respiração normalizar
A pomba aquieta-se por cima dos seus olhos
Beijo-a até acreditar
Quase até ser feliz
Deixo durar o instante para lá do possível
Quase à terra de ninguém
Onde as coisas começam a ser e não há gestos fabricados
Largo a pomba
Melhor
Deixo-a escapar-se entre os dedos
O tempo retoma o seu incessante e monótono trabalhar
E eu levanto-me pronto para mais um dia de trabalho

José gomes ferreira – Poeta militante

José gomes ferreira – Poeta militante

Poeta militante no coração da vida, das flores dos amores, poeta militante em todos os sentidos, no sentido de fazer política e no sentido de cantar sempre por todos e para todos. A sua íntima convivência com o humano em cada um de nós vai ao extremo de andar pelas ruas vestido de vidro/para que todos possam ver na minha alma/a dor comum finalmente revelada.
Em quanto escreve grita contra a injustiça e a fome. Perpassam continuamente nesta poesia o romântico com suas belas metáforas e o neo-realista com seus gritos de desaprovação, mas de uma forma tão consciente que por vezes se glosa a si próprio e ironiza com as suas metáforas.
O desejo de lutar por um mundo melhor confunde-se com uma ideia de homem, nós somos o que faremos de nós: a realidade não é o que vejo/mas o que imagino/ para ser verdade.
Esta ideia que o ser humano é aquilo que se construir remete para a ideia da esperança sempre presente, aliás esta é uma poesia de esperança, alegria, inquietação e rebeldia, diálogo permanente entre um eu social e um eu individual.
Tudo serve para tema, tudo o poeta transfigura em palavra. José Gomes Ferreira era uma nuvem de dor a arder pela humanidade, nuvem que ele tanto fazia subir aos céus, como descer aos abismos, ou tornava simplesmente nuvem de palavras e escondia em gavetas com outras nuvens. Um poeta para sempre porque soube cantar o que queria cantar num canto cuja expressão se eterniza na mármore sem modelo da palavra.

Camilo Pessanha, Clepsidra

Camilo Pessanha, Clepsidra

Poeta delicado, subtil, que se vai deixando ir molemente, lentamente, suavemente, até ao fim.
Tudo concorre para a morte, tudo diz não vale a pena: não respireis, não respireis.
Apesar da brevidade do livro são diversos os temas tratados: sonho, tempo, memória, água, morte, tristeza, dor.
O fim, a desgraça estão presentes desde o início de vida: eu vi a luz em um país perdido. Leva ao limite a obsessão pela morte, pelo fim e uma certa crueldade consigo próprio só o meu crânio fique/ Rolando, insepulto, no areal/
Mas a dor é vivida de forma contraditória porque embora o poeta procure afastar a dor, no entanto sem ela o coração é quase nada, é como se só na dor se existisse realmente, portanto, afastar a dor seria não viver, só na dor, esta falta de harmonia se vive realmente.
O poeta associa à paisagem o seu estado de espírito melancólico associando-os de tal modo que faz esbater, misturar o exterior e o interior, sobrepondo imagens caleidoscópicas. Estas imagens tremeluzem, é como se estivéssemos a ver a chuva cair através de um vidro e tudo à nossa frente estivesse desfocado, não fosse possível fixar as imagens com nitidez. Há toda uma música que se desprende das líquidas palavras de Camilo Pessanha, água a correr quase silenciosa, enquanto o tempo passa inexorável e o poeta sonha para fugir à realidade cruel e fria.
Grande poeta simbolista, português e não só.