
Muito se pode dizer deste livro de poesia – Depois da Rússia -, e sobre a poesia de Marina, mas vou discorrer apenas sobre três ou quatro aspectos que me chamaram mais a atenção nesta poesia.
Um primeiro tem a ver com o uso simbólico que faz dos mitos, nomeadamente gregos, e da Bíblia.
por exemplo, o mito de Eros e Psique, sendo Psique aquela que continua leal, à procura pelo mundo inteiro daquele que ama, sofrendo tormentos e perdas sem fim pelo seu amor.
Metáfora que, infelizmente, de algum modo se adequa extrordinariamente bem a Marina, sofrimento, dor, fuga, e mais sofrimento, mais dor e perdas constantes até ao dia em que vai ao encontro da morte.
O mito de Euridice e Orfeu em que Marina entende Euridice como aquela que cortou os elos com o mundo, aquela que foi tomada pela imortalidade e já não quer voltar atrás. Diz a Orfeu que não venha por si, pois ela é agora um ser apenas espírito, tudo acabou.
Há vários poemas de Marina em que o mundo é visto como uma queda, viver é perder-se, nascer é cair, e morrer será como Eurídice voltar a ser grande, pertencer ao espírito do universo.
Outro mito é o de Lilith, a mulher insubmissa, a primeira mulher, a rebelde, a que não aceita a superioridade masculina, a mulher divina, independente.
O mito de Fedra e Hipólito representa para Marina a construção da moral imoral da paixão, uma moral que vive das forças da paixão numa lógica que não é a do homem comum, como se a paixão fizesse ascender a um patamar superior os seres que nela fossem capazes de viver. Como se fosse um mundo regido por forças que o homem e a mulher comuns desconhecem.
Dentro desta lógica, ligada ainda aos mitos, vemos surgir em muitos poemas a mulher oráculo, a mulher perseguida pelos seus poderes, a mulher que contrapõe os seus valores e o seu poder aos poderes e aos valores masculinos. A mulher insubmissa que ousa ser e amar, sibila.
Nem o Estalinismo conseguiu destruir esta forma de Marina ser e ver a mulher.
Há ainda outros mitos, Tarpeia, a mulher que traiu os romanos, e Sulamita, a bela e formosa mulher do cântico dos cânticos, independente, leal e independente. Há ainda Aquiles e Helena entre outros.
Estes mitos são o tijolo da alvenaria do poema de Marina, visão de sentimentos e comportamentos de personagens que encarna, nem sempre de acordo com a visão tradicional.
Marina, torce os mitos, para os fazer viver de acordo com os seus temas primordiais.
As imagens de Marina são um animal certeiro, fresco, que esvoaça e se move no papel. Imagens cruas, violentas, sugestivas, sangrentas, apaixonadas vorazes: “Dentes em cascalho – em migalhas”, forjadas na própria carne, pedaços de alma e sangue.
É um pouco atrevido dizer isto, mas sinto em alguns versos semelhanças com Dickinson.
Por exemplo nestes versos:
“Vertida do balde-
A manhã. A cal do caiador.
Na crónica da costela,
O céu- que clareira!”
Temos travessões, suspensões, elipses.
Outro dos temas recorrentes tem a ver com o tempo. Perseguida pelo estalinismo até à exaustão fala desse tempo, melhor, mais do que desse tempo concreto, fala de um tempo de que esse tempo é exemplo, de um tempo “do mal ardente”, de um tempo “de ser órfão do mundo”. Marina sabe que aquele tempo já existiu e voltará a existir. Um tempo terrível que lhe minou a vida e que ela desassombradamente assumiu como o seu tempo, vivendo nele da forma mais livre que foi capaz. Esse tempo instalado na sua Rússia, para onde voltou por ser a sua casa, e que acabou por lhe roubar tudo o que era possível roubar, ao ponto de uma das suas filhas – Irina- morrer de fome; e acabou por a conduzir ao suicídio. É esse tempo maldito que Marina caracteriza incessantemente.
Marina exprime-se na sua poesia como poeta de rara grandeza, sem falsas modéstias, artífice que conhece “todas as escadas divinas”.
Uma poesia de rara altitude, voz poderosa que se desdobra em múltiplas vozes de forma desassombrada e intrépida, apaixonada.
Não posso deixar de salientar a paixão que coloca na escrita, como se as palavras fossem estacas que lhe houvessem atravessado o coração, e ela as cravasse imorredoiras e sangrando no papel, desfolhando-as como pétalas, enquanto morre.