
Hamlet abre para um mundo de possibilidades. Talvez todos os caracteres sejam dialécticos, mas essa dialéctica está aqui mais visível que nunca. Não só a personagem Hamlet, mas também outras personagens. Que pensar de Polónio?, a sua pretensa sabedoria que vem da experiencia mostra-nos apenas que cada um de nós escolhe do mundo as ideias que se melhor se adequam a si e faz disso a verdade. Mas são apenas ideias que têm de ser pensadas a cada instante, o que a personagem não faz, tornando-se um idiota sábio que tem a certeza absoluta de tudo. Parece achar que nunca falha e não acerta em nada. Considera-se tão sério e tem um comportamento manipulador e imoral, inventa boatos, é prepotente, grosseiro, não respeita a privacidade de ninguém, manipula como mais lhe convém tudo e todos. Até o pouco que aprendeu na vida o atrapalha.
Mas o seu único crime é ser quem é, e quem pode fugir ao que é?
E que dizer de Ofélia?
É das personagens mais interessantes da peça juntamente com Hamlet. Antes de enlouquecer nunca ouvimos Ofélia. E a razão é a mais simples de todas as razões, Ofélia não existe. Não sabemos quem é Ofélia pela simples razão que não é ninguém. Ou melhor, é o que os seres masculinos da sua vida quiserem. Obedece ao pai, obedece ao irmão, e mostra-lhes sempre o mesmo carinho, a mesma simpatia. O que pensa?, não sabemos. Diz o que se espera dela e faz o que lhe dizem para fazer. Não tem uma existência própria. Dá-nos uma pequena ideia de até onde podem chegar o abuso do poder, a manipulação e a prepotência, é um títere nas mãos de um pai manipulador.
Por estranho que pareça, ou não, Ofélia apresenta a sua própria voz quando enlouquece. Só aí, por entre as palavras desconexas nos apercebemos da sua intranquilidade e angústia. Aí temos entre incoerências a voz daquele ser que nunca desabrochou completamente. A sua loucura terá algo a ver com a necessidade de se construir por suas próprias mãos agora que o pai morreu?, agora que ele morreu quem a dota de existência?, ficou sem saber quem era?, talvez não tenha aguentado olhar para o abismo de si, talvez não tenha aceitado ser tão diferente do ser a que o pai e a sociedade em geral a haviam determinado. Será isso?
E o interessante é que as vozes voltam a vesti-la na morte, a donzela recatada torna-se mais uma vez o que esperam dela, agora pela voz de uma mulher, a rainha, que a integra numa espécie de imaginário feminino, um ser angelical, símbolo da donzela virginal, incorporando-se na natureza. Mais uma vez o imaginário social a vestir a mulher. Só que agora já não através da voz masculina, mas da voz feminina, que aparentemente parece acreditar neste tipo de imaginário que os homens inventaram para as mulheres. O resultado continua a ser uma falsa imagem da mulher e um colete de forças a vestir aquela que morreu, que nem morta se livra de ser vestida pelas vozes dos outros.
A peça mostra uma espécie de dois mundos antagónicos, noite e dia, invisível e visível, profundo e superficial. Um mundo puro, perfeito. E o mundo da noite, profundo, inconsciente em que domina o caos, os desejos inconfessáveis e o ego demoníaco.
Para todos é como se só existisse o mundo visível e perfeito, mas o outro mundo escondido vai formando papos na pele do visível mostrando que algo se passa no fundo do ser. Um desses papos profundos a dar sinal da existência dessa profundidade escondida são os festins que o rei dá e em que se bebe até cair. Orgias que, diz Hamlet, lhes valem o desprezo das outras nações. É esse mundo fundo, mau, caótico e indócil a vir às margens do visível reclamar para si o ser humano.
Já tudo se disse sobre Hamlet.
Hamlet que não encontra em si firmeza para cometer os actos que se propõe. Hamlet que motivado pelos ciúmes é injusto e grosseiro com Ofélia. E, depois, claro, a grande questão – ser ou não ser?
É uma questão que perpassa toda a peça, lutar contra o destino ou ser indiferente às setas que nos tentam abater?
E dentro desta questão, no miolo desta questão, uma outra. Será que lutar com o destino ou sermos indiferentes é uma escolha nossa, ou inclinamo-nos para uma dessas hipóteses por personalidade, quase como um destino que não podemos travar porque tem a ver com o que nós somos. Será que foi isso que aconteceu com Hamlet?
Será daí que vem a sua hesitação e revolta?
Era a hora de destruir sem contemplações e encontrou-se, não com o homem de acção que urgia ser, mas com o pensador cheio de escrúpulos e dúvidas a questionar-se em vez de agir?
É uma possibilidade, e se for assim, ai vemos o pensador pensar mil vezes antes de agir, ter todos os escrúpulos, não querer punir sem ter a certeza e depois, quando age, já tarde e más horas, só o faz como um tresloucado, como um carro desgovernado levando à sua frente inocentes e culpados sem qualquer hesitação, atropelando os seus próprios princípios.
É uma peça onde cada um é o que é e não sai desse círculo. E ao ser cada um o que é, é mais do que parece porque todos os caracteres humanos são coisas diversas e até contraditórias. Mostram uma coisa, são outra e pensam ainda outra. Para além disso, ainda há o inconsciente que ninguém verdadeiramente conhece e que influencia o nosso comportamento. Esta peça é sobre tudo isto como já muitos disseram.
Duas asserções, ainda, em termos da escrita. O facto de ser uma peça que vai directa ao essencial, ao que é. E depois as mudanças de linguagem, tanto das várias personagens, mas também da mesma personagem em diferentes situações, seja a linguagem da loucura de Ofélia, mas também a linguagem mais grosseira de Polónio, e do próprio Hamlet com Ofélia.
Muitas interpretações se podem dar a este texto imortal, mas o melhor será certamente lê-lo e relê-lo.