
Logo a um primeiro olhar causa estranheza a poesia de Emily, por causa, claro, dos famosos travessões, das maiúsculas que dependem do valor da palavra e não da gramática, do uso do plural quando se esperava singular, do uso do artigo indefinido quando se esperava definido. Mas este assombro não vem só em termos visuais; em termos de conteúdo há, para mim, mais assombros ainda, os temas – Imortalidade, Fama, Vida, Eternidade, Amor, Deus Estrelas, Morte, Estrelas, Vazio, Nada, Claridade, Molde, Poesia, etc, são o mundo ao contrário, o essencial torna-se diário, quotidiano, tema à flor do papel, à flor da palavra, penetra a palavra, transforma-se num quase-conceito (metonímia?), mundo em carne viva, rochas em carne viva, rios em carne viva, mundo interior em carne viva, céu em carne viva, Deus em carne viva. Só essências e as ligações entre tudo, ditas com uma singularidade de elipse, em que se diz só com o mínimo, o essencial tornou-se quotidiano e o quotidiano desapareceu para lá dos céus.
Emily mostra-nos um mundo, faz-nos entrar no seu quarto, na sua cabeça, no seu espírito, na sua casa. A fonte é uma enorme energia interior que se diz arrastando consigo, como uma maremoto, formas ditas elegantes do escrever e regras gramaticais para assim melhor expor coração, alma, corpo, pensar, cérebro, e a forma que encontrou de o fazer – sublime, quanto mais não seja por originalidade e beleza-.
Isto é o que me surge em termos gerais; após uma leitura destes 200 poemas, mas muito mais se pode esmiuçar, desde logo, a sensação de que os seus quase-conceitos – Afeição, Silêncio, Leilão, Mente Humana, Erva, etc…- são lava que lhe vem das entranhas que petrifica ao contactar o ar cá fora.
Publicar- é o Leilão
Da Mente Humana –
Justificada – a Pobreza
Para coisa tão vil
Emily esgrime com os seus quase-conceitos como quem atira, ou empurra pedregulhos para o sítio certo, é com pedregulhos – quase conceitos- que faz a sua poesia e, através de elipses, estas rochas tomam o espaço, são fortes, enigmáticas, magnéticas, estão ali porque era ali que tinham que estar, mas claro só o sabemos depois de Emily as fazer estar. Antes não diríamos semelhante coisa, nem os seus contemporâneos disseram, pelo contrário, tentaram inclusivamente, corrigir-lhe a gramática.
Emily joga com os seus quase-conceitos, daí a sua poesia pareça escrita sem esforço, como se jogasse um jogo de pedras em que fizesse cair certeira no sítio certo cada palavra, escrita orgulhosa e humilde ao mesmo tempo, há orgulho em ser-se assim tão diferente, mas só sendo muito humilde se o pode ser. Isto é, tem que se estar atento a si e obedecer-se onde tudo diz não se deve obedecer, e é preciso orgulho e força para manter o que para si não pode escrever-se de outro modo, mesmo que ao mundo inteiro pareça impossível, pobre, errado e até imbecil.
Emily é como aqueles guerreiros que fazem explodir as pontes atrás de si, cada travessão tem muitas vezes essa explicação, ela passou a ponte e conscientemente fê-la explodir atrás de si, salta concisa, compacta, sólida para a ponte seguinte e faz explodir a ponte seguinte também, faz cair o fio condutor que nos permitiria reconhecer os seus passos, não nos deixa migalhinha nenhuma a que nos agarrarmos, nada que permita perceber por onde andou o seu pensamento, impiedosamente, obriga-nos a lê-la e a relê-la se a quisermos conhecer, e muitas vezes obriga-nos a ficar à porta a roer os dedos e a bater em vão, não deixa fase visível, poesia de rochas escarpadas viradas ao céu, como todos os grandes poetas não faz cedências, a sua poesia simplesmente é. E por isso até é estranha a ideia de cedência, se apenas diz à sua maneira, ceder seria o quê?, escrever à maneira dos outros?, isso não é ceder, é não ser.
Assim, escreve uma poesia que não explica, nem se explica, poesia por clarões, casa, universo.