
Os bicicleteiros possuem, dentro dos edifícios, um corpo exactamente igual ao nosso, membros, tronco, cabeça, mas, uma vez no exterior, esse corpo transforma-se em uma bicicleta azul. Escusado será dizer que para os bicicleteiros azuis esta transformação exterior resulta tão natural como para nós, nada nos transformar. E era firme convicção dos bicicleteiros azuis que em todos os universos que existem, e em outros que porventura venham a existir, ou até naqueles que tenham porventura existido e já terminado, seria também habitual, homens, mulheres e crianças transformarem-se, no exterior, em bicicletas azuis.
Faz-se aqui uma ressalva para explicar que também os recém-nascidos mal saem do hospital logo se transformam em bicicletinhas muito pequenininhas e azuis.
Alguns pais, preocupados, vestem-nos, quando saem da maternidade, com um camuflado que não deixa à mostra qualquer nesga do seu corpinho e desse modo conseguem os seus bebés não se transformem em bicicletas azuis nos primeiros dias de vida.
Havia, aliás, no país azul uma grande divergência entre pais e pais, pais e pediatras e pediatras entre si sobre a melhor forma de proteger os bebés. Havia pais, adeptos da maravilhosa pedagogia do esforço, da ginástica e do ar livre, que repudiavam uma educação excessivamente protectora e todas as formas anti-naturais de educar os bebés, designadamente, o camuflado para bebés, outros pais, defendiam, pelo contrário, o uso do camuflado como forma de salvaguardar o sistema imunitário dos recém-nascidos. Os dois tipos de pais encontravam-se, está visto, em campos opostos da barricada no que concerne à educação dos bebés no país das bicicletas azuis.
Relatavam estes últimos pais, inúmeros casos de recém-nascidos que não haviam resistido a infecções por carência do seu sistema imunitário, e a energia, diziam eles, necessária à defesa do sistema imunitário fora gasta nas transformações de bicicleta para pessoa e de pessoa para bicicleta, tendo esses bebés falecido poucas horas depois de terem gasto, de forma tão despropositada, a energia que tão necessária lhes era para sobreviverem nos primeiros tempos de vida.
Os defensores do ar livre acusavam por sua vez os defensores do camuflado de inventar números, ninguém, diziam, podia confirmar que esses bebés haviam morrido por ausência de defesas do seu sistema imunitário e atiravam para a mesa os números daqueles recém-nascidos que haviam morrido dentro do camuflado, designadamente, por falta de ar. E falavam também das implicações que teria no desenvolvimento psicológico dos bebés, o facto de terem sido expostos ao ar sem se transformarem, e chegados aqui esgrimiam os números das depressões, psicoses, paranóias, esquizofrenias daqueles a quem os pais haviam impedido vivessem de forma natural. Aqui, zangavam-se os outros pais porque a ciência, diziam, não comprovava nenhuma daquelas estatísticas. Também entre os pediatras havia uma guerra entre os defensores acérrimos do camuflado e os que defendiam o ar livre, a natureza, o esforço, entre estas duas posições havia ainda a dos pediatras que militavam numa posição intermédia defendendo que só o rosto do bebé permanecesse em contacto com o ar livre, segundo eles, seria prejudicial impedir o contacto visual do bebé com o exterior, por fim, havia aqueles que defendiam uma análise caso a caso. Para aumentar a confusão havia ainda entre os pediatras os que consideravam que, certos ou errados, os pais é que deviam decidir, mas logo outros se levantavam para defender que deveria ser a ciência e não os pais a identificar o caminho correcto.
As crianças que, como se sabe, são imprevisíveis e curiosas, gostavam de experimentar as transformações. Assim, brincavam muitas vezes a puxarem-se para a frente e logo a seguir para trás de modo a transformarem-se e a destransformarem-se quase em simultâneo, a experimentar por a cabeça de fora do camuflado transformando-a em guiador enquanto o resto do corpo permanecia sem se transformar, a experimentar com um pé, uma perna, um braço, uma mão. É que, enquanto nos adultos a transformação só ocorre inteira ao fim de alguns minutos, nas crianças a transformação ocorre imediatamente assim que qualquer parte do corpo entra em contacto com o exterior.