Poema – descida aos infernos

Tudo os infernos inundam quando se vê o outro ser, como uma penugem imberbe invadem a pele, a cinza o espaço, uma cratera o solo vistoso.

A dor do abismo mergulha na pele das coisas todas do mundo, não esquece penumbra, orifícios, cílios, dedos, rosto, peso, mãos, pestanas de sonhos, gaivotas passageiras do coração, mergulha nos ponteiros dos relógios, nos cascos dos cavalos, nas paredes, nos tectos das casas, na ventania, no mar, na areia das pradarias, na ternura das palavras, na cratera dos olhos, há uma solidão inatingível que se atinge e faz criar mais abismo, já só há caminhar para lá, sem ninguém que siga, indiferente ao ruído dos medíocres, avança sereno para a morte e para o fim, para a obra e para o nada, voltará à tona, húmido de terra e de húmus, violento na exegese da purificação e do sacrifício coberta a sua tez de uma cor indefinivelmente sombria, aprofunda a dor, não sai da dor, mastiga a dor, enfia a dor num suplício tremente num ombro, leva a dor a pontos traumáticos, inicia a dor na escada infernal por sobre os montes, usa a dor como coberta para deitar sobre a erva e comer farnel do íntimo que traz desde tempos imemoriais consigo atrelada ao corpo todo, dor porta da lembrança, janela do esquecimento, corpo estranho aninhado no corpo, dor solilóquio interior, mundo de aves e de sonhos que se abre e vira a face sem palavras em forma de lago azul e verde, montanha, estrada, corpo outra vez, dor a fazer caminhar, a entregar a alma às coisas de dentro, dor certa do diapasão da escuridão, abre-latas da garrafa do coração, dor vinho que a própria dor plantou, dor animal sorumbático, triste e trabalhador, formiguinha avantajada que alimenta, vive em cima de cada coisa que o é, pássaro de seda a tricotar sentimentos, a abrir caudais de países mediterrânicos no sangue, a fazer emergir transatlânticos de pavor no olhar.

Sente a incompreensão até ao fim, até ao fundo e arrisca tudo, ouve, é autêntico, como se os porcos fossem sérios e importantes e merecessem ser ouvidos, ouve os mais burros dos burros, os idiotas mais idiotas, autêntico até à medula com tudo e todos, num mundo de incapazes exige criação, grita: toda a gente é capaz, e espera a incompreensão como a criança espera o ralhete, como a criança pensa na punição desde o percurso de escola até casa, mil pensamentos fugidios e desorganizados lhe passam pela cabeça, desde o fugir de casa, pedir ao professor que não envie as classificações, enganar o carteiro, refazer classificações, até à aceitação do medo, do castigo, da dor tão grande como se o mundo acabasse ali à frente, o precipício a cada passo, pensar tudo e exigir a incompreensão, amar a incompreensão, desejar a incompreensão, regozijar-se com a incompreensão, provocar a incompreensão, estar atento às manobras do coração, estar atento ao sofrimento, à intempérie que cai dentro da alma, à negação, dar entrada aos parasitas para destruir.

Espécie de exegese, ser capaz de não ser, ascético, esquálido, minguado, exige não ser porque a curiosidade por tudo mata o aprofundamento do ouvir até à obsessão, ouvir é ir mais fundo no mergulho do mar de nós, ouvir é tarefa a tempo inteiro, ouvir é brincar com as conchas na areia do húmus das nossas entranhas verdes e cinzentas, é chegar aí, ouvir o enrolar das ondas do mar, ouvir onde cresce a natureza e os seres, estar atento à nidificação da palavra no ninho, a palavra e os sentimentos e os seres que os sentimentos buscam para se dizer, ovos, corais vermelhos de palavras que se sentem.

Recusa ser mais do que aquilo e luta entre esta recusa em ser mais e o ser mais a toda a hora, faminto de uma fome de invadir fronteiras de conhecimento e de ser, deixa a incompreensão alastrar, incendiar o universo, castigar, chicotear sem nunca ser menos, ser apenas aquele que caminha no seu caminho pessoal, lutar contra a tentação de responder, contra a tentação de não ser para mostrar ao mundo o que se é, não mostrar nada ao mundo, tornar-se invisível como ave migradora, invisível ao vulgo, navegar nos céus, reformular-se, conceber-se longe dos olhos do vulgo, consciencializar toda uma nova poesia fora dos olhos do mundo, resistir à tentação do fácil, continuar só e sem defesas para lá do amor, aceitar de braços abertos o ódio e conceber novos tratados internacionais da lonjura de um novo olhar, fabricar chuvas de palavra invisíveis, acercar-se da morte e do ódio e da incompreensão e fazer novos pássaros que voem para lá dos muros que a incompreensão crie, não lutar contra a incompreensão, deixar o ódio manifestar-se livremente, a mediocridade construir países de pus e de grilhetas e de algas e de cadeias personalizadas para cada ser humano, e contornar as grilhetas, as algemas, preso, mesmo assim continuar na sua vida pessoal, quando os últimos se venderem, quando os últimos desistirem, quando mais ninguém acreditar, é aquele que é, é ele que se afoita na noite à procura de histórias, é ele que sem medo vai à intempérie buscar o olhar com que possa elimitar-se nas nuvens, é ele aquele seu irmão que é seu eu e não é ele, o eu que é filho do mesmo pai, um pai que era outro quando concebeu aquele filho, um pai que quando o concebeu já não era quem tinha sido, e ele o filho busca o pai que nunca conheceu, e aquele que conhece o pai está lá fora na intempérie a sacrificar-se para ser de novo o pai, anda ao deus dará a perder-se nos caminhos sombrios, a ser sem nome e sem medo e com a morte às costas, esse ser que veio do nada e ao nada torna, esse ser que emparceira com a vida, e ele do lado de cá, ele protegido a servir-se do irmão para através de olhos emprestados falar do mundo, da vida, do vento, do mar, da chuva, dos seres desgarrados que sobrevivem à noite, que se escondem em becos, que fogem da vida, que procuram uma nova cova da morte, seres despojados, seres que se encostam à vida e a sentem, afloram a vida, e ele um escaravelho que insidiosamente vai beber com os olhos à matéria da vida que esses seres trazem dentro de si, fora de si, nos cabelos, nas mãos, em todo o corpo, nos órgãos na alma, nas entranhas, ele como um escaravelho, ele bem trajado, ele como um diletante, ele como um ser de outro mundo, outra galáxia, outro planeta, desce a chafurdar na vida por intermédio de seres outros, ele bem trajado no seu fato axadrezado, nas suas mãos delicadas e limpas chafurda no corpo daqueles seres abjectos, de unhas sujas e cabelos crespos, aqueles corpos que nunca tinham visto água trazem vida que ele pode limpar e usar nos seus cadernos de poesia, ele que não vive, eram seus irmãos, todos eles seus irmãos e o seu pai fora o pai deles todos, desses estropiados, desses perdidos, desses facínoras, fora o pai dele que lhes dera vida e ele sabia disso, sabia da longa viagem do pai para se tornar asseado, sabia da limpeza moral por trás do fino tracto vocal, sabia dos anos que a aspereza viral demorara a sair, por isso o pai se esforçara tanto para que ele não fosse.

Quis descer ao abismo, quis ver o que eles eram e viu. Descer ao abismo e ver e conhecê-los com as mãos, conhecê-los com os dedos, senti-los pular no que são.

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