
O rapaz lia constantemente desde manhã até deitar, lia em casa, na rua, no cabeleireiro, nos restaurantes; lia sempre, a toda a hora, sem perder um minuto. Punha todo o cuidado em não dialogar com ninguém, considerava o diálogo diminuidor da sua capacidade de entendimento. Sempre que algum adulto se aproximava com intenções de dialogar fingia-se mais absorto na leitura, continuando a ler mesmo que o outro continuasse a falar, abortando qualquer possibilidade de diálogo.
O rapaz livro não fala, não partilha, não vive, não sente, o rapaz livro lê tudo, mesmo tudo, completamente tudo. Vai de autocarro para a escola, vem da escola, passeia nas ruas, só ou acompanhado, sobe e desce escadas, dentro dos edifícios ou no exterior, come, bebe, descansa, conversa, espirra e vê televisão a ler. Em qualquer sítio onde o corpo caiba, mesmo dobrado, lê. Enquanto come, levanta o livro, e lê.
Um dos dias mais felizes da sua vida foi quando contabilizou dez anos sem qualquer contacto humano. Emocionou-o perceber não tinha sido simpático ou antipático com ninguém porque simplesmente não conversara com ninguém, não tinha brincado com jovens, nem com menos jovens, não tinha aprendido nenhuma daquelas coisas tão importantes que os adultos gostam tanto de ensinar. E desejou com muita determinação continuar na vida um solitário, sem nunca brincar, nunca ter amigos até ao fim.
Desde a primeira infância uma das grandes preocupações do rapaz fora criar rotinas sempre iguais que lhe permitissem manter e até aumentar, se possível, a pobreza afectiva da sua vida. Pode dizer-se que chegar à mais imponderável miséria afectiva se tornara com o tempo um objectivo seu. Nem sempre era fácil, como rapidamente descobriu, ele há muitos camelos afectuosos na vida, mas aprendeu a driblar-lhes as boas intenções. Era o grande orgulho da sua vida. Criar uma rotina impossibilitadora de contactos. Inventou formas de evitar mesmo os cumprimentos humanos mais básicos e, quando tal resultava impossível, optava por passar de cabeça baixa a ler, completamente desatento, e em passo acelerado, como quem tem um compromisso inadiável do outro lado da cidade e já está atrasado. No caso de ver ao longe algum amigo dos pais, por exemplo, metia imediatamente por uma rua, enfiava-se num prédio, num café, num restaurante, sítios onde só entrava em caso de absoluta necessidade, isto é, em caso de fuga. Vivia atento aos outros para melhor fugir deles.
Entretanto, o rapaz crescia e os pais preocupavam-se cada vez mais com a diferença que representava.
Escondiam-no, receosos, dos inspetores do pensamento que espiavam as ruas à cata de algum jovem adulto que não ingerisse regularmente o medicamento das palavras certas. Os pais faziam de tudo para despistarem os inspectores do pensamento, mas não era desiderato fácil. É que, relativamente à tomada da medicação, a política da cidade era de obrigatoriedade absoluta. Os cidadãos viam-se obrigados a ingerir nos primeiros dias de vida as gordinhas, ligeiramente ovais cápsulas amarelas, vulgarmente designadas medicamentos da verdade. Embalagens tão brancas como o branco de Sorolla. Dentro da embalagem, devidamente acondicionadas, lá estão as palavras-medicamento, cada embalagem traz três, e são uma maravilha, são mais que um mundo novo, são para aí trezentos mundos novos que vêm com os medicamentos.
Os supermercados do pensamento abastecem toda a cidade de palavras com a verdade embalada, esse era o produto que se comprava e vendia como carne no supermercado, e permitia que para tudo existisse uma só interpretação certa, coisa extremamente benéfica para a convivência humana.
Era uma maravilha, todos os actos estavam lá perfeitamente encaixotados, definidos, interpretados. Se havia dúvidas sobre qualquer situação, pessoa, acto, era só chegar ao supermercado, ir à secção dos medicamentos da verdade e procurar dentro das milhares de pequenas secções e sub-secções resposta para as dúvidas existenciais, questões sobre a realidade do mundo, existência de Deus, valor das intuições, das metafísicas, das físicas, das emoções. Não se pense não haja no supermercado também a secção das situações corriqueiras do dia-a-dia, há sim, vêm logo a seguir ao corredor das intuições paralelas.
Todas as verdades são embaladas, no vácuo, ainda em alto mar, juntamente com o correspondente significado. Tudo explicitado em folhetos postos em todas as ruas, todas as casas, todas as paredes. Há até umas bisnaguinhas para se deitarem gotinhas da verdade nos olhos, é remédio santo, ai que bem se vê toda a verdade, que clareza, transparência, é um mimo.
Por toda a cidade, o governo instalou umas mini balanças como aquelas para o peso que vêem o íntimo interpretativo de cada um, máquinas fabulosas, acedem directamente ao espectro interpretativo de cada um e tiram em poucos segundos uma média que tem em conta os nossos julgamentos dos últimos seis meses. A média vai de zero a dez, acontecendo zero apenas quando um homem ou uma mulher tem uma só explicação para tudo quanto se passa no mundo, interpreta todos os acontecimentos de uma só maneira. É algo muito raro, e é uma grande honra, o nome do herói fica inscrito na memória da cidade por ter alcançado um feito fabuloso, torna-se um herói da noite para o dia, quando aparece um destes seres, é logo glorificado e incensado e as pessoas da cidade só querem vê-lo ou vê-la, tocar nem que seja numa fímbria da sua roupa, ficam emocionadas as pessoas e acham, como se acha sempre que se glorifica tanto alguém, que são pessoas de outra estirpe, sem nada de parecido com elas, seres completamente diferentes, feitos de outra matéria, podem até ser imortais.
Estes medicamentos da verdade são concebidos através da extracção de palavras que são extraídas através das famosas máquinas anel que se colam à pele e vão fundindo-se no corpo, mais e mais adentro, penetram no interior até chegar ao mais fundo do fundo dos seres, onde só existem os lagos de palavras íntimas. A máquina identifica, selecciona e extrai as palavras íntimas do ser. Após a identificação e selecção a ventoinha seca as palavras que os lagos tornaram húmidas. Após a secagem dá-se a extracção, as ventosas trazem à superfície as palavras ainda cobertas de sangue, suor, gordura.
As palavras íntimas são enfiadas numa bacia até ficarem completamente limpas, nuas, sem protecções; aí são esmigalhadas até ao osso, é-lhes retirada vestimenta, segurança, protecção e carne. Os restos dos ossinhos das palavras são prensados formando um vulgar medicamento da verdade compacto, sólido. A palavra é para ser ingerida pelos cidadãos como qualquer medicamento e navega pelo interior do corpo humano digerindo interpretações, tentando cada vez mais tudo tenha uma só interpretação. Este medicamento é vendido em todos os quiosques, supermercados, farmácias e as pessoas buscam-nas regularmente. Todas as pessoas da cidade têm o sonho, de difícil concretização, de se tornarem pessoas verdade, e por isso tomam tantos medicamentos tanto quanto lhes é possível, estão sempre a pesar-se e rezam ardorosamente a Deus pelo milagre do zero. Mas é muito raro alguém ganhar essa propriedade de ver tudo o que há no mundo de uma única maneira, afinal, estamos a falar de todas as áreas do mundo interpretadas de uma só forma.
Durante a infância os pais não haviam dado medicamentos ao rapaz-livro. É verdade que outras famílias também não dão medicamentos aos seus descendentes nos primeiros anos, alguns mesmo até aos 12 anos e nada acontece. E a criança que começa a tomar o medicamento da verdade aos doze anos em nada se distingue das crianças medicadas desde os primeiros dias. Sim, em poucos meses apresentam a mesma apetência pela verdade de sentido único que todos os colegas.
O que preocupava os pais era que aos 15 anos o rapaz-livro continuava a recusar tomar medicamentos, por maior que fosse a insistência, tal como recusava dissimular-se no mundo, mas o que preocupava sobremaneira os pais era que o rapaz nem colocava a possibilidade de casar aos 16 anos, como era suposto fizesse, e não casar não era daqueles acontecimentos que se pudessem esconder aos inspectores da verdade e do pensamento. Os pais sabiam que se o comportamento do rapaz chamasse a atenção dos polícias do pensamento seriam todos obrigados a fazer testes e facilmente se verificaria que o rapaz não fora medicado, o que acarretaria imediatamente não só a sua medicação forçada, como a sua posterior retirada à família. Quando o desespero dos pais atingia já o zénite, eis que de repente tudo se resolveu. Contra todas as expectativas, o rapaz livro conheceu, namorou e casou em poucos meses com uma rapariga livro. Na realidade, a rapariga não era uma rapariga livro, mas tornou-se, por amor, uma rapariga livro. Primeiro, teve curiosidade em conhecer o rosto que se escondia atrás do livro, e perante a recusa do rapaz em mostrar-se, em vez de desistir, colou também ela um livro à cara, encontrando assim uma forma de comunicar que surpreendeu os próprios pais do rapaz-livro que se perguntaram porque diabo nunca se haviam lembrado de usar esse processo que facilitaria imenso as comunicações e haveria de os tornar mais cúmplices do filho. O rapaz entendeu este procedimento como uma declaração de amor. Era a primeira vez que alguém lhe fazia a oferta do amor. Aceitou saírem juntos com a condição de não trocarem palavra. Tornaram-se inseparáveis, iam juntos no autocarro, sentavam-se a ler no banco de jardim, caminhavam a ler. Passados alguns meses a rapariga levava já para todo o lado o livro colado à cara, quando o tirava era como se já não fosse ela. O mundo parecia-lhe diferente sem um livro a esconder-lhe o rosto. Posteriormente, passaram a comunicar um com o outro num idioma que, séculos mais tarde, na humanidade dos homens livro, se viria a chamar, para se distinguir do livrês novo, o livres velho. Claro que tudo tinha que ser feito às escondidas dos inspectores do pensamento, sempre muito atentos a qualquer transgressão do pensamento único.
Ela dizia Marguerite Duras, ele respondia Chandler. Ela Stendhal e ele kafka. Ele Simenon, ela Silinger. Ficavam assim horas num divertimento infindo, trazendo e levando, trazendo e levando até um deles não ser capaz de inventar mais nenhum escritor para identificar a coisa em si e perder o jogo. Numa dessas noites, encontravam-se sentados no sofá a jogar, as palavras cruzavam continuamente o espaço, quando a determinada altura, a rapariga disse Virginia Woolf e o rapaz livro respondeu Dostoievsky. Imediatamente as duas palavras chocaram no espaço e fundiram-se. Não houve como resistir e o rapaz-livro e a rapariga-livro amaram-se nas palavras delirantes. Conceberam nessa noite aquele que viria a ser o primeiro rapaz-livro. O rapaz, em vez de uma cara como qualquer ser humano, apresentava quando nasceu, a capa de um livro de Melville. Os pais convenceram-se que todos os seus filhos-livro seriam parecidos com a capa de um livro de Melville, mas tiveram mais dois filhos e descobriram não ser assim. A menina-livro parecia-se com a capa de um livro de Margarite Duras e o filho com a capa do vermelho e o negro de Stendhal. Mas isto era simbolicamente, e portanto, era tão difícil dizer o que simbolizavam realmente os rostos dos seus filhos como explicar o que denotam os edifícios quando denotam, o que não é sempre.
Foi nessa época que o rapaz criou o manifesto que o tornou conhecido dos seus contemporâneos, da origem e princípios dos seres-livro. Na sua definição mais ampla era a pessoa cuja defesa contra o mundo é ler, e por isso lê tudo, e transporta permanentemente na algibeira um livro de bolso para usar em caso de necessidade. Evita contactos, compromissos, perdas de tempo, conversas com pessoas indesejáveis (todas), e dessa forma, com um livro na mão se defende do contacto dos seres vivos que por uma qualquer razão desconhecida encontram com ele afinidades.
O filho-livro era excêntrico, mesmo para o mundo dos livros, não só porque tinha um livro a substituir-lhe a cara, mas também por apresentar o corpo coberto de livros. Fazia-o, segundo afirmava, para proteger o corpo de olhares alheios.
Na verdade, isto sucedia porque as várias partes do corpo dele haviam aprendido a ler à sua maneira: joelhos, pés, pernas, abdómen. Cada parte do seu corpo tem uma maneira muito própria de ler diferente de todas as outras formas, até por causa da memória e do que a define em termos de carácter, os joelhos sugam a interpretação das palavras a partir do líquido sinoidal, as mãos lêem a partir do sangue, os pés a partir do fígado, e os olhos a partir da alma dos outros.