Continuação do conto O rapaz livro

Nessa primeira fase, os pais acompanhavam-no para todo o lado porque, no afã de se esconder, acontecia o rapaz livro não ver o que se passava à sua frente e embater violentamente contra todo o tipo de objectos, ou ver-se violentamente empurrado, sacudido, atropelado.

Após vários incidentes, os pais receosos de que um dia sucedesse um acidente de repercussões mais graves, resolveram, sem obliterar palavras, furar-lhe o livro à altura dos olhos. O rapaz, a medo, aceitou experimentar, ficando maravilhado com a mobilidade que dessa forma adquiria. Daí ao uso do livro como máscara foi um ápice.

Assim nasceu o rapaz-livro que, caminhando para todo o lado com um livro colado à cara, vivia escondido do mundo.

Aos seis anos aprendeu a ler e, a partir desse dia, nunca mais fez outra coisa, como se essa revelação maior lhe fizesse viver uma espécie de renascimento, não por suas mãos, mas por suas leituras. Tudo para ele ganhou sentido, passou a escolher os livros que queria colados ao rosto, a seleccionar elásticos curtos, mas suficientemente largos para afastar o livro da cara e ler enquanto caminha. Por precaução, dependendo do local onde vai, com quem vai e da actividade a realizar, habituou-se também a transportar um livro além do que traz colado à cara.

Coisas há, no entanto, que mantém inalteradas ao longo do tempo, por exemplo, sempre que há actividades desportivas, sociais, enfim, eventos extremamente motivadores, inovadores, sedutores, ele, infelizmente, e com muita tristeza, como é óbvio, não pode realizar porque está a ler. Era a sua desculpa favorita, nunca nada podia fazer porque estava, claro, a ler. Não permitia que lhe dissessem nada porque afinal estava a absorver cultura, o que não é coisa pouca de se fazer.

Os pais geriam, enquanto o rapaz dormia, a renovação dos livros, motivo pelo qual o rapaz-livro acreditou durante anos que Deus vinha pelo escuro da noite trocar-lhe os livros. Pensava ele que Deus lhe lia a mente e por isso sabia quando acabava de ler, e se Deus lia a mente dos leitores, então conhecia todas as coisas que se passavam no interior dele: interrogações, decisões, dúvidas, ideias, enfim, o que se passa dentro de cada um. Pensava o rapaz que fazia isto certamente parte do repositório de tudo aquilo que os homens designam como o que só Deus é que sabe, e é mesmo muita coisa essa coisa que só mesmo Deus é que sabe. A ele Deus dera-lhe o dom de ler, sim, antes ainda de aprender o rapaz livro já lia o que havia para ler dentro das personagens dos livros.

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